terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA -

Pe. Fernando Bastos de Ávila, S.J.

Proponho-me, nesta comunicação, percorrer "à vol d’oseau" e evolução do pensamento social da Igreja de Leão XIII a João Paulo II, apenas para poder elencar os grandes princípios que, graças à tradição social da Igreja, à experiência histórica da Igreja "perita em humanidade" (Paulo VI), foram constituindo as bases de uma convivência humana digna. Dispenso-me de remeter cada princípio às fontes oficiais, para não onerar o texto de citações que procurei explicitar no trabalho "Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja". A referência a esses grandes princípios permitirá ver com clareza a originalidade específica da Doutrina Social da Igreja.
I- A EVOLUÇÃO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
A "Rerum Novarum", encíclica "sobre a condição dos operários" defendeu o dever do Estado em garantir os direitos dos operários, entre os quais sublinha a importância do seu direito de criar sindicatos para reivindicar a realização de seus legítimos interesses. Leão XIII não só rejeita o socialismo e responsabiliza o capitalismo pela questão social, mas propõe uma verdadeira política social que inspirou toda política social e trabalhista contemporânea .
Pio XI comemorando os 40 anos da "Rerum Novarum", promulga sua encíclica, "Quadragésimo Ano", no dia 15 de maio de 1931. É a segunda grande encíclica social, que procura resgatar o legado de Leão XIII no novo contexto histórico que se afigurava ameaçador. Decepcionado com as democracias liberais, Pio XI estava convicto que o destino da humanidade seria decidido no confronto dos grandes blocos totalitários emergentes: o nazi-facismo, de um lado e o comunismo marxista de outro. Teve a audácia não só de condenar estes sistemas (v. encíclicas: "Non abbiamo bisogno", 1931; "Mit brennender Sorge", 1937, "Divini Redemptoris", 1937), mas também de propor um sistema alternativo, o corporativismo cristão fundado na preocupação de preservar a dignidade inalienável da pessoa humana esmagada pelos regimes tota1itários e a primazia do bem comum sobre os interesses tanto corporativos como classistas. A tragédia da Segunda Guerra Mundial não permitiu que a proposta de Pio XI tivesse a merecida ressonância.
Sabe-se que o Pio XII desejava comemorar com uma encíclica o 50º aniversário da "Rerum Novarum" em 1941. O mundo porém, vivia os horrores da guerra. Não havia ambiente para uma celebração festiva. O Papa dedicou entretanto sua radiomensagem de 1º de junho daquele ano para comemorar o cinqüentenário da encíclica de Leão XIII, focalizando o tema do destino universal dos bens: inspirado nele, focaliza os grandes princípios da doutrina social da Igreja que deverão mobilizar os católicos no esforço de reconstrução de uma nova ordem social a ser empreendida depois da tormenta da guerra.
Em 1961, João XXIII publica também no dia 15 de maio, sua encíclica social "Mater et Magistra" em homenagem ao 70º aniversário da "Rerum Novarum". É a mais longa encíclica social e nela, o Papa examina as novas dimensões que assumira a questão social desde Leão XIII. Considerando os sinais dos tempos, intui que a questão social não reduzia só a disputa das classes pela apropriação dos meios de produção, mas assumira já dimensões planetárias: era a disputa dos recursos do planeta entre os povos desenvolvidos e a imensa multidão dos que viviam ou sobreviviam nas condições de subdesenvolvimento. Detecta os caminhos de um crescente processo de socialização destinado a permitir ao maior número, inclusive aos homens do campo, o acesso a níveis de vida compatíveis com sua dignidade de filhos de Deus.
João XXIII abria caminho para a mensagem social de Paulo VI que em sua encíclica, "Populorum Progressio", de 26 de março de 1967, incorpora definitivamente a temática do desenvolvimento na reflexão social da Igreja. Paulo VI via com angústia a distância crescente entre os povos desenvolvidos e subdesenvolvidos. Era impossível consolidar a paz, o grande anseio da humanidade, tema da última encíclica, "Pacem in Terris", de João XXIII, no contexto de um mundo dividido por imensas desigualdades: "O desenvolvimento é o novo nome da paz". O Papa entretanto não reduzia o desenvolvimento ao mero crescimento econômico. Ele sabia da impostura dos grandes sistemas, capitalismo e comunismo, que propunham como solução de todos os problemas a satisfação indefinida de um desejo insaciável de consumo. Para ele, o mais importante não é ter mais; o ter mais só se justifica na medida em que permite ser mais. Sua mensagem é o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens. Daí o seu apelo à solidariedade internacional. Renova seu apelo em Carta Apostólica ao Cardeal Secretário de Estado, em 1971, a "Octogésima Adveniens", comemorando o 80º aniversário da "Rerum Novarum", na qual deixa claro que a Igreja renuncia a qualquer pretensão de propor um sistema alternativo. É missão dos leigos comprometidos na política construir os modelos adequados às diversidades nacionais.
João Paulo II pretendia celebrar o 90º aniversário da mesma encíclica, no dia 15 de maio de 1981. O atentado de que foi vítima a 13 de maio adiou a publicação de sua encíclica. Ele já redigira entretanto um discurso aos operários, que o Cardeal Agostino Casaroli, Secretário de Estado, leu na Praça São Pedro no mesmo dia, 15 de maio. A encíclica "Laborem Exercens" aparece a 14 de setembro do mesmo ano. Nela, João Paulo II inova profundamente a abordagem do problema social, quando diz: "o trabalho é uma chave e provavelmente a chave essencial de toda a questão social" ("Laborem Exercens", nº 3). Na realidade, ate então, toda a questão social era centrada no problema da propriedade. João Paulo II não hesita em afirmar que "a propriedade dos meios de produção - tanto a propriedade privada como a pública ou coletiva – só é legítima na medida em que serve ao trabalho" ("Laborem Exercens", nº 14). Na sua segunda encíclica social, "Sollicitudo Rei Socialis", de 30 de dezembro de 1987, o Papa comemora o 20º aniversário da "Populorum Progressio" em que voltava a insistir na tese de que só a solidariedade internacional pode promover o desenvolvimento integral.
A "Centesimus Annus" promulgada a 1º de maio, na festa de São José Operário, propõe-se fazer uma "releitura" (nº 3), da primeira encíclica social: a "Rerum Novarum", de Leão XIII, cujo Centenário a Igreja já está comemorando no mundo inteiro.
Essa releitura nos convida a um tríplice olhar; "olhar para traz", para o contexto do fim do século passado em que emerge a "Rerum Novarum" e para os princípios fundamentais que ela formulou: "olhar ao redor" para as novas "coisas novas" deste nosso fim de século: "olhar ao futuro", para o advento do terceiro milênio "carregado de incógnitas e de promessas" (nº 3).
II- OS GRANDES PRINCÍPIOS
1- A dignidade inalienável da pessoa humana, à luz da fé: criada por Deus, remida por Cristo, santificada e vocacionada pelo Espírito Santo. Dignidade que exclui qualquer discriminação racial, social, econômica, religiosa ou cultural. "O homem é o caminho da Igreja", é a síntese mais densa do compromisso da Igreja com o homem, tema que encerra a encíclica "Centesimus Annus". É o princípio que marca a distância entre a Doutrina Social da Igreja e todos os sistemas e ideologias de inspiração totalitária de direita ou de esquerda, para as quais a pessoa só recebe sentido do coletivo social do qual ela é apenas uma parte descartável.
2 — A primazia do bem comum. O princípio se bifurca em dois planos: o nacional e o mundial.
O bem comum nacional é a responsabilidade e a própria razão de ser o Estado que pode tudo aquilo e só aquilo que promove o bem comum, ou seja, o bem de todos, sem discriminações. Ele é precisamente o conjunto das condições concretas que permitam a todos atingir níveis de vida compatíveis com sua dignidade. A primazia do bem comum e a consagração da democracia como único regime político que preserva a dignidade da pessoa humana.
O bem comum em sua dimensão mundial é o bem da comunidade das nações ("Centesimus Annus" nº 52) confiado a uma autoridade supranacional e cujos sujeitos são precisamente os diversos países do mundo. Sua concretização e as condições de sua eficácia são ainda apenas esboçadas, nas grandes organizações supranacionais, sob a tutela da ONU, mas parece constituir o desfecho de uma evolução milenar, inscrita na própria natureza social do homem. O bem comum universal será o grande desafio do próximo milênio, para recuperar a implosão do 2º mundo e a marginalização do 3º mundo - ("Centesimus Annus").
3- A primazia da destinação universal dos bens sobre a apropriação individual. Os bens criados se destinam a todos os homens. A apropriação individual, o chamado direito de propriedade, é uma forma eficaz de realizar melhor esta destinação. A propriedade, situada assim à luz deste princípio, é entendida como responsabilidade social e não como privilégio excludente: "Sobre toda a propriedade privada pesa uma hipoteca social" - ("Laborem Exercens").
4 — A primazia do trabalho sobre o capital. O capital como forma de apropriação coletiva, pública ou privada, "só é legítimo na medida era que serve ao trabalho" (L.E.). O capital é o fruto do trabalho e a ele se destina. É o princípio que marca a incompatibilidade da Doutrina Social da Igreja com o capitalismo liberal. É importante relembrar o caráter fundamental desse princípio, num momento histórico no qual, com a implosão do socialismo real, um neoliberalismo, já denunciado por João Paulo II, na "Centesimus Annus", se apresenta com a pretensão de ser a única opção, para uma humanidade sem alternativas.
5- O princípio da subsidiariedade. Segundo ele, as instâncias superiores de poder não se devem atribuir o desempenho daquilo que as instâncias inferiores podem melhor realizar. O dever das instâncias superiores é um dever supletivo, de coordenação e promoção da iniciativa e da criatividade das instâncias inferiores. É este princípio a fonte da vitalidade de um número imenso de instituições, movimentos e iniciativas que são a expressão da maturidade democrática liberta do paternalismo estatal. É também o princípio que oferece os critérios para discernir, na variedade das conjunturas, a solução de problemas tais como centralização e descentralização, naciona1ização e privatização.
6 — O princípio da solidariedade. É o princípio segundo o qual cada um cresce em valor e dignidade na medida em que investe suas capacidades e seu dinamismo na promoção do outro. O princípio vale analogicamente para todas as relações concretas: entre o homem e a mulher, os pais e os filhos, os grupos sociais, os níveis e setores de poder, o capital e o trabalho, o mundo desenvolvido e subdesenvolvido. Hoje se pode falar numa descoberta sempre mais lúcida de uma relação de solidariedade entre o homem e a natureza: o homem mais se valoriza na medida em que preserva e promove a natureza e esta, protegida e preservada, garante melhor qualidade de vida para o homem.
III- A ORIGINALIDADE
Onde reside a originalidade de uma doutrina fundada sobre esses seis pilares? Em dois aspectos que considero essenciais.
Primeiro: Toda a história humana foi a história de uma incansável busca de liberdade e de justiça.
O homem quis ser mais livre das contingências naturais e das violências que o oprimiam. Mas a humanidade fez a trágica experiência de que a conquista da liberdade criou condições para a imposição de uma imensa iniqüidade social. Refiro-me as conseqüências da revolução francesa, da revo1ução industrial e à questão social delas resultante.
A frustração gerada por essa questão social alimentou uma ânsia de justiça expressa em condições de igualdade, que resultou numa imensa opressão da liberdade, especialmente da liberdade religiosa. Refiro-me à revo1ução soviética, ao comunismo internacional, cuja implosão no Leste-europeu assistimos.
A ânsia da liberdade foi pretexto para a injustiça; a busca da justiça foi realizada pelo sacrifício da liberdade.
O primeiro aspecto da originalidade da Doutrina Social da igreja é precisamente este: ela defende o atendimento às radicais exigências da justiça, precisamente através do exercício responsável da liberdade, ela defende a liberdade para atender às exigências da justiça.
Entretanto, o desejo de liberdade e de justiça não é obviamente característica exclusiva da Doutrina Social da Igreja. Muitas outras doutrinas as promovem. Aqui vem assim o segundo aspecto da originalidade da D.S.I.. Fora da Igreja a busca da liberdade com justiça passava pelo ódio. Só a Igreja percebe com toda a clareza que a definitiva conciliação entre as exigências da liberdade e da justiça é uma civilização do amor.
João Paulo II em suas três encíclicas sociais vem marcando a incompatibilidade da Doutrina Social da Igreja tanto com o liberalismo capitalista quanto com o coletivismo marxista. O primeiro, exaltando a liberdade, leva a humanidade a uma exacerbação do consumismo hedonista. O segundo sob a falsa pretensão de resgatar a justiça é responsável pela opressão dos direitos de uma autêntica liberdade. Recupera assim a grande tradição social da Igreja, inaugurada oficialmente por Leão XIII, na encíclica "Rerum Novarum", de 1891.
CONCLUSÃO
Essa doutrina, mesmo incompreendida por muitos, dentro e fora da Igreja, vem se confirmando como a grande mensagem capaz de abrir o caminho para o novo milênio e para uma nova civilização. Depois de tantas injustiças, tantos ódios, tantos sofrimentos, tantas guerras, torna-se cada vez mais claro que só o amor e a solidariedade poderão conciliar os grandes anseios da humanidade: atender as exigências da justiça através do exercício responsável da liberdade. Uma civi1ização do amor e da solidariedade é a proposta da Doutrina Social da Igreja de Leão XIII e João Paulo II. A humanidade já está madura para perceber que a proposta é irrecusável.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja.

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